sábado, novembro 18, 2006

1. Sexualidade e amor

Nota prévia: Aconselha-se firmemente a quem tem certezas na utilização do genital ou a quem é estruturalmente seguro nos afectos a não prosseguir a leitura deste texto sacado directamente de Amor e Sexo, digo, "Sexo e Amor" de Francesco Alberoni.
Isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco. Coloquem a camisinha, ou o diafragma, tá?
CAPÍTULO 1

A COMPLEXIDADE DO EROTISMO

1. Sexualidade e amor

Na alma humana actuam impulsos contrastantes que criam dúvi­das, dilemas e levam a agir de maneira contraditória. Duas destas ten­dências, que podem entrar em conflito, reconciliar-se ou chocar-se de novo ao longo da nossa vida, são a sexualidade e o amor. Muitas ve­zes não nos apercebemos disso, porque sexualidade e amor nos pa­recem frequentemente fundidos, ou porque em muitos casos o amor nasce da sexualidade. Porém, a razão principal dessa confusão é outra: no último século tem prevalecido uma escola de pensamento, nomea­damente a psicanálise, que tende a associar o prazer, o amor e o sexo. É de natureza sexual, pertence à sexualidade oral, o prazer da criança que, pegada ao mamilo, suga o seio. É de natureza sexual, pertence à sexualidade anal, o prazer de relaxar os esfíncteres no acto da defeca­ção. Trata-se de formas de sexualidade pré-genital que continuam na vida adulta mesmo depois de se ter imposto o primado da sexualidade genital. Mas têm origem sexual não apenas os prazeres, como também os sentimentos da criança em relação à mãe. É de natureza sexual a ale­gria, a felicidade que a criança sente quando, depois de ter procurado a mãe, corre angustiada para os braços dela e adormece docemente so­bre o seu seio. É sexual o desejo que sinto ao observar uma bailarina, o que se faz com uma prostituta, a paixão que sinto pela minha namora­da, o desejo espasmódico de vê-la quando estou longe, a alegria de ou­vir a voz dela que me diz «amo-te». Enfim, tudo é sexual.

Demasiadas coisas juntas. Depois de um século de adesão quase unânime a esta tese, embora reconhecendo a Freud o imenso mérito de ter entendido a importância da sexualidade na vida humana, che­gou a hora de voltarmos a estabelecer algumas distinções elementares. Mesmo considerando apenas o adulto e aquilo que Freud designa de sexualidade genital, há sempre uma diferença entre a união pressurosa, a passagem por curiosidade de uma cama para outra, a paixão desespe­rada pelo nosso amado ou pela nossa amada e a ternura que sentimos pelo nosso filho ou pela nossa filha.
Existe uma sexualidade imbuída de amor e outra que não tem nada que ver com este, que, bem pelo contrário, é a antítese dele, como a violação, sobretudo aquela que ocorre em caso de guerra ou saque. Nas guerras antigas, a cidade conquistada era saqueada, os homens, in­clusive as crianças, eram mortos e as mulheres, violadas. Ainda no sé­culo passado, os soldados alemães das SS usaram como prostitutas as raparigas judias antes de as matarem, e os soldados russos que avan­çavam para Berlim violaram centenas de milhares de mulheres alemãs que fugiam perante eles.
Existem formas de sexualidade não violenta totalmente separadas do amor, como aquela impessoal da orgia, na qual se têm relações se­xuais indistintamente com um e com outro. Enfim, temos casos em que o desejo sexual não se harmoniza com quem amamos, mas põe­-nos em conflito com ele.
A sexualidade, como nos lembra Bataille1, é devassidão, transgres­são das regras, dos tabus, da ordem do dever quotidiano. Vive no pre­sente. É capricho, dissipação, esquecimento dos deveres, das preocu­pações. Para o adulto, é o máximo do jogo, também do ponto de vista do desencadeamento do corpo. O desporto requer disciplina, regra. Só a dança consegue ser espontânea, mas não chega aos excessos do ero­tismo. A sexualidade, por isso, parece mais adequada para romper as relações do que para as criar. Contudo, mesmo o grande amor, o amor apaixonado do enamoramento que estabelece laços emotivos fortís­simos e novas regras de vida, nasce frequentemente da sexualidade e constitui o seu triunfo.
N o livro Amo-te 2 distingui os laços emotivos em frágeis, médios e fortes. Laços frágeis são os que temos com conhecidos, vizinhos, colegas. Mas também. os que temos com uma prostituta ou que estabele­cemos com uma pessoa com a qual temos relações sexuais ocasionais. A mera relação sexual, sem mais nada, não estabelece laços fortes. En­tre os Laços médios lembramos os que temos com os amigos. Nós abri­mo-nos com eles, confiamos neles, recorremos à sua ajuda. Mas, di­versamente da mãe que continua a amar o filho mesmo quando ele se porta mal, quando o amigo nos mente ou nos atraiçoa, a relação rom­pe-se. São médios também os laços eróticos que duram enquanto nos dão prazer, e que se desvanecem perante a primeira dificuldade ou de­sacordo. São, pelo contrário, Laços fortes aqueles que se estabelecem en­tre filhos e pais e entre pais e filhos. Com efeito, resistem a desilusões, aflições e amarguras. São fortes também os laços criados pelo enamo­ramento, porque continuamos a amar mesmo quem nos faz sofrer. Enfim, é um laço forte o amor consolidado de uma vida vivida em co­mum, em que cada um se tornou indispensável para o outro, tanto que, quando um deles morre, o outro muitas vezes morre também.
Os antropólogos, após terem estudado os costumes sexuais e ma­trimoniais de centenas de sociedades e culturas, chegaram à conclu­são de que na nossa espécie há uma forte tendência para a monoga­mia, a exclusividade amorosa e sexual. Porém, ao mesmo tempo, em todas as sociedades, existe também um certo grau de infidelidade con­jugal, seja en..tre os homens, seja entre as mulheres. Existem portanto em nós duas tendências, dois desejos básicos simultâneos e em confli­to entre eles. O desejo que nos impele para uma pessoa especial, única, inconfundível, com a qual estabelecemos um laço amoroso duradou­ro e da qual temos ciúmes. O outro é um impulso de exploração que nos impele a todos, homens e mulheres, à procura de encontros eróti­cos e relações com novas e diferentes pessoas. Os dois impulsos coin­cidem apenas no enamoramento, porque este se dirige a uma pessoa nova, mas estabelece um laço de exclusividade. É por isso que o ana­lisei com tanta atençã03. Com efeito, depois de Stendhal\ tinha sido posto de lado. O enamoramento escapava a qualquer tentativa de ex­plicação por parte da psicanálise. Aliás, a tradição científica dominan­te, a anglo-saxónica, subestima-o, ignora-o, considera-o um fenómeno cultural temporário, ao ponto de não utilizar sequer um vocábulo para o designar, chamando-o ainda romantic love, como se tivesse nascido noséculo XIX, enquanto é suficiente ler a Bíblia para o encontrar em tem­pos mais remotos.
No domínio das relações entre sexo e amor, o enamoramento exalta e funde o máximo da sexualidade e o laço amoroso mais forte. A sexua­lidade preserva o seu carácter desregrado, explosivo. Porém, o enamo­ramento não se reduz a um enorme prazer sexual. É uma renascença, é juventude, excesso, êxtase. Rompe os laços anteriores, suspende a lei, instaurando o seu próprio direito soberano. Transfigura o mundo, põe­-nos em contacto com as fontes profundas do ser e cria um laço forte, duradouro, exigente. A mulher apaixonada antepõe o amado ao pai, à mãe, à celebridade preferida. O homem vê a sua namorada como a mais sedutora de todas as hierodulas, a mais erótica de todas as cortesãs.
Porém, ao insistir demais no enamoramento, acaba-se por pôr em segundo plano e subestimar a importância de outras experiências eró­ticas e da sexualidade em si mesma. Os dois impulsos de que falei, aquele que nos liga a uma pessoa e aquele que nos leva à procura do diferente, nunca desaparecem, e se num dado momento prevalece o primeiro, logo pode prevalecer o segundo, ou até podem manifestar-se ambos ao mesmo tempo.
Com base nestas considerações, julgo ter chegado o momento de estudar de maneira mais aprofundada e sistemática a grande variedade de relações entre sexualidade e amor.
Primeiro a sexualidade violenta, depois aquela em que o outro na sua integridade nem sequer existe, ou seja, a sexualidade impessoal. A seguir, a sexualidade em que o outro está presente como indivíduo, mas ainda não há amor. Depois, as relações sexuais mais ou menos duradouras, até ao caso do enamoramento e do amor que dura. Por último, o processo de «deserotização» da relação nascida do enamo­ramento. Isto porque, passado algum tempo, a fusão entre amor e se­xualidade enfraquece ou quebra-se. As duas tendências, que se tinham fundido, separam-se e podem entrar outra vez em conflito. O marido, embora continuando a gostar da sua mulher, deixa-se facilmente atrair sexualmente por outras mulheres. A mulher, mesmo continuando a gostar do marido, deixa-se tentar por uma aventura sexual.

1 comentário:

Erecteu disse...

Acontece.
Mas não há-de ser ela a perturbar a razão e muito menos a emoção.
A luta trava-se de cabeça fria.