Nota prévia: Ía isto tão mansamente, logo teve que qparecer aqui a Maria a molhar a Bolachinha no leite! Vá XÔ vão-se embora. Renovo que isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco, coloquem ou não, a camisinha, ou o diafragma, tá?
Murray Davis, utilizando os conceitos da fenomenologia de Alfred Schutz 9, introduz o conceito de realidade vital, em particular a distinção entre a realidade quotidiana, ou seja, aquela que vivemos todos os dias, e a realidade erótica, na qual temos de entrar para vivermos eroticamente. Nas relações de trabalho ou no desporto, quando estamos empenhados numa actividade que nos absorve, encontramo-nos fora do mundo erótico. Só entramos nele no momento em que lemos um livro erótico, ou vemos um filme, ou iniciamos uma experiência erótica. Se bem que seja muito fácil deslizarmos de um mundo para outro, em termos fenomenológicos trata-se duma passagem radical.
O mundo erótico é um mundo distinto que não somente tem sensações e linguagem próprias, mas é também um mundo em que todas as coisas mudam de significado e tonalidade. O nosso horizonte restringe-se, centrando-se no corpo ou nalguns dos seus aspectos eróticos, e esquecemo-nos dos deveres quotidianos e das aflições, absorvidos por este novo interesse. Murray Davis observa que frequentemente os prisioneiros tentam ficar mergulhados nas fantasias eróticas o máximo de tempo possível, sendo estas um dos raros paliativos contra a angústia das grades e da lentíssima passagem das horas. Chamamos erótico a um género literário ou cinematográfico porque nos dá acesso ao mundo erótico. Trata-se de um acesso que a linguagem científica não proporciona.
Detenhamo-nos por um instante na diferença entre a análise de Murray Davis e a de Bataille. Afirma Bataille que o erotismo é uma saída agressiva e brutal da vida quotidiana, a ruptura dum tabu. Murray Davis diz-nos que se trata apenas da passagem dum campo fenomenológico para outro. E, ao lermos o livro dele, parece-nos que esta passagem se realiza de uma maneira pacífica. É provável que ambos tenham razão. Há casos em que a passagem é abrupta, traumática. Por exemplo, alguém que vê um filme pornográfico hard core pela primeira vez fica excitado e desconcertado. A mesma coisa acontece a um homem que, pela primeira vez, é levado ao bordel. Pelo contrário, na vida quotidiana de duas pessoas casadas, ou de dois amantes, pode haver uma passagem natural de uma actividade não erótica para uma erótica. Antes conversam com os amigos, e pouco depois abandonam-se ao êxtase sexual na cama. E, noutras situações também, o acesso ao mundo erótico, mais do que à transgressão dum tabu, pode assemelhar-se a uma saída da vida quotidiana.
A saída pode ser mais ou menos drástica, mas trata-se sempre duma saída e é sempre de alguma forma transgressiva. Por isso, a literatura erótica, embora seja oficial, elogiada, galardoada, tornada objecto de estudos e conferências, constitui sempre um género à parte. Durante as conferências podem-se ler trechos desta literatura, mas o comentário é feito com a linguagem científica ou literária do mundo quotidiano. E não pode ser doutra maneira porque aquela literatura não pretende nem explicar, nem raciocinar, nem analisar, mas, pelo contrário, fazer com que o leitor mergulhe no mundo erótico, vivendo-o. Esta literatura leva-nos com ela, arrasta-nos para fora da realidade habitual para mergulharmos na realidade erótica, que nos faz ficar excitados, desejosos, vibrantes. Desta maneira, leva-nos a transgredir as regras da vida quotidiana, da sua esterilidade. Trata-se de um universo distinto que, porém, temos de abandonar logo, voltando à realidade de sempre, para discuti-la, analisá-la e até elogiá-la.
Não há maneira de escapar a isso. Murray Davis, que tem utilizado ambas as linguagens misturando-as, nas primeiras páginas do seu livro pede desculpa ao leitor. «Sinto-me obrigado a passar de um registo a outro», diz, «produzindo uma sensação desagradável, uma dissonância. Tal como um adolescente que ainda não possui a sua própria tonalidade de voz e começa primeiro como tenor, depois passa ao baixo e daqui ao soprano.»11
O psicólogo Berne12, mais conformista e embaraçado do que ele, expulsa da sua própria exposição da sexualidade todas as palavras obscenas afirmando que são infantis e substitui-as por expressões próprias da linguagem quotidiana adulta e decorosa. Para escapar à acusação de não ser científico, evita também todas as expressões poéticas. O resultado é que o seu livro é rigoroso, mas ao mesmo tempo banal. Não consegue provocar os desejos e as emoções que deveria analisar e explicar.
Portanto, quem quer que pretenda escrever sobre erotismo tem de fazer uma escolha prévia. Se quiser evitar produzir sensações e emoções eróticas tem de utilizar as expressões científicas ou as da etiqueta quotidiana. Se, pelo contrário, quiser evocar as emoções eróticas e praticar a fenomenologia, a certa altura tem de deixar a linguagem científica e médica para usar expressões mais comuns, quotidianas, até ordinárias, mas capazes de evocar a experiência.
Ao escrever Enamoramento e Amor 13 e A Amizade 14, eu próprio deparei com um problema linguística.
Vamos começar pelo primeiro livro. O meu caríssimo amigo Roland Barthes queria dissertar sobre o amor, mas dava-se conta de que, ao adoptar uma linguagem esterilizada, não teria conseguido comunicar nada. Por isso, resolveu o problema escrevendo os Fragmentos de um Discurso Amoroso 15, ou seja, analisando alguns temas do ponto de vista fenomenológico com a ajuda de citações de poetas, escritores e artistas. Pelo contrário, eu construí antes uma verdadeira teoria científica do enamoramento e depois, para a apresentar, utilizei a clássica linguagem amorosa. A urdidura teórica, o esqueleto, já _o tinha elaborado no livro Movimento e Istituzione16. Depois, porém, dei a este esqueleto músculos, nervos e sangue usando a linguagem da experiência amorosa. O êxito deste livro levou-me a utilizar o mesmo método para o estudo da amizade17. Com efeito, a amizade também possui uma estrutura profunda que permanece sempre idêntica, assim como tem uma linguagem específica que é a mesma desde Cicerone até Montaigne e Voltaire.
Muitos foram os que julgaram que essa escolha linguística tinha sido feita com propósitos de divulgação. Nada disso; foi feita porque constitui a única maneira de desenvolver uma ciência que seja também uma fenomenologia das emoções. Só se pode obter este resultado se combinarmos a estrutura teórica com a linguagem específica de uma determinada experiência.
No que diz respeito ao meu estudo do erotismo, o problema foi mais sério porque enquanto as linguagens do enamoramento e da amizade são unitárias, a do erotismo é estruturalmente dúplice e é construída com base numa polaridade que vai da linguagem obscena à amorosa e poética. Consegui sair disso evitando as referências explicitamente sexuais e utilizando sobretudo imagens e metáforas amorosas. Podia fazê-lo porque o objecto específico da obra era a diferença de sensibilidade entre homem e mulher, e como a sensibilidade feminina conjuga mais profundamente sexo e amor, bastava eu apoiar-me mais no erotismo feminino do que no masculino. Neste livro, porém, já não posso evitar o problema. Tenho de o resolver com todo o arco da linguagem erótica, um continente imenso em que é necessário encontrar um princípio de ordenação.