segunda-feira, novembro 20, 2006

3. O mundo erótico

Nota prévia: Ía isto tão mansamente, logo teve que qparecer aqui a Maria a molhar a Bolachinha no leite! Vá XÔ vão-se embora. Renovo que isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco, coloquem ou não, a camisinha, ou o diafragma, tá?

Murray Davis, utilizando os conceitos da fenomenologia de Alfred Schutz 9, introduz o conceito de realidade vital, em particular a distin­ção entre a realidade quotidiana, ou seja, aquela que vivemos todos os dias, e a realidade erótica, na qual temos de entrar para vivermos ero­ticamente. Nas relações de trabalho ou no desporto, quando estamos empenhados numa actividade que nos absorve, encontramo-nos fora do mundo erótico. Só entramos nele no momento em que lemos um livro erótico, ou vemos um filme, ou iniciamos uma experiência eróti­ca. Se bem que seja muito fácil deslizarmos de um mundo para outro, em termos fenomenológicos trata-se duma passagem radical.
O mundo erótico é um mundo distinto que não somente tem sen­sações e linguagem próprias, mas é também um mundo em que to­das as coisas mudam de significado e tonalidade. O nosso horizon­te restringe-se, centrando-se no corpo ou nalguns dos seus aspectos eróticos, e esquecemo-nos dos deveres quotidianos e das aflições, ab­sorvidos por este novo interesse. Murray Davis observa que frequen­temente os prisioneiros tentam ficar mergulhados nas fantasias eróti­cas o máximo de tempo possível, sendo estas um dos raros paliativos contra a angústia das grades e da lentíssima passagem das horas. Chamamos erótico a um género literário ou cinematográfico porque nos dá acesso ao mundo erótico. Trata-se de um acesso que a linguagem científica não proporciona.
Detenhamo-nos por um instante na diferença entre a análise de Murray Davis e a de Bataille. Afirma Bataille que o erotismo é uma saída agressiva e brutal da vida quotidiana, a ruptura dum tabu. Murray Davis diz-nos que se trata apenas da passagem dum campo fenomenológico para outro. E, ao lermos o livro dele, parece-nos que esta passa­gem se realiza de uma maneira pacífica. É provável que ambos tenham razão. Há casos em que a passagem é abrupta, traumática. Por exem­plo, alguém que vê um filme pornográfico hard core pela primeira vez fica excitado e desconcertado. A mesma coisa acontece a um homem que, pela primeira vez, é levado ao bordel. Pelo contrário, na vida quo­tidiana de duas pessoas casadas, ou de dois amantes, pode haver uma passagem natural de uma actividade não erótica para uma erótica. An­tes conversam com os amigos, e pouco depois abandonam-se ao êxtase sexual na cama. E, noutras situações também, o acesso ao mun­do erótico, mais do que à transgressão dum tabu, pode assemelhar-se a uma saída da vida quotidiana.
A saída pode ser mais ou menos drástica, mas trata-se sempre duma saída e é sempre de alguma forma transgressiva. Por isso, a literatura erótica, embora seja oficial, elogiada, galardoada, tornada objecto de estudos e conferências, constitui sempre um género à parte. Durante as conferências podem-se ler trechos desta literatura, mas o comentá­rio é feito com a linguagem científica ou literária do mundo quotidia­no. E não pode ser doutra maneira porque aquela literatura não pre­tende nem explicar, nem raciocinar, nem analisar, mas, pelo contrário, fazer com que o leitor mergulhe no mundo erótico, vivendo-o. Esta literatura leva-nos com ela, arrasta-nos para fora da realidade habitu­al para mergulharmos na realidade erótica, que nos faz ficar excitados, desejosos, vibrantes. Desta maneira, leva-nos a transgredir as regras da vida quotidiana, da sua esterilidade. Trata-se de um universo distinto que, porém, temos de abandonar logo, voltando à realidade de sempre, para discuti-la, analisá-la e até elogiá-la.
Não há maneira de escapar a isso. Murray Davis, que tem utilizado ambas as linguagens misturando-as, nas primeiras páginas do seu livro pede desculpa ao leitor. «Sinto-me obrigado a passar de um registo a outro», diz, «produzindo uma sensação desagradável, uma dissonância. Tal como um adolescente que ainda não possui a sua própria tonalida­de de voz e começa primeiro como tenor, depois passa ao baixo e daqui ao soprano.»11
O psicólogo Berne12, mais conformista e embaraçado do que ele, expulsa da sua própria exposição da sexualidade todas as palavras obs­cenas afirmando que são infantis e substitui-as por expressões próprias da linguagem quotidiana adulta e decorosa. Para escapar à acusa­ção de não ser científico, evita também todas as expressões poéticas. O resultado é que o seu livro é rigoroso, mas ao mesmo tempo banal. Não consegue provocar os desejos e as emoções que deveria analisar e explicar.
Portanto, quem quer que pretenda escrever sobre erotismo tem de fazer uma escolha prévia. Se quiser evitar produzir sensações e emoções eróticas tem de utilizar as expressões científicas ou as da etiqueta quotidiana. Se, pelo contrário, quiser evocar as emoções eróticas e praticar a fenomenologia, a certa altura tem de deixar a linguagem científica e médica para usar expressões mais comuns, quotidianas, até ordinárias, mas capazes de evocar a experiência.
Ao escrever Enamoramento e Amor 13 e A Amizade 14, eu próprio de­parei com um problema linguística.
Vamos começar pelo primeiro livro. O meu caríssimo amigo Roland Barthes queria dissertar sobre o amor, mas dava-se conta de que, ao adoptar uma linguagem esterilizada, não teria conseguido comuni­car nada. Por isso, resolveu o problema escrevendo os Fragmentos de um Discurso Amoroso 15, ou seja, analisando alguns temas do ponto de vista fenomenológico com a ajuda de citações de poetas, escritores e ar­tistas. Pelo contrário, eu construí antes uma verdadeira teoria científica do enamoramento e depois, para a apresentar, utilizei a clássica lingua­gem amorosa. A urdidura teórica, o esqueleto, já _o tinha elaborado no livro Movimento e Istituzione16. Depois, porém, dei a este esqueleto mús­culos, nervos e sangue usando a linguagem da experiência amorosa. O êxito deste livro levou-me a utilizar o mesmo método para o estudo da amizade17. Com efeito, a amizade também possui uma estrutura pro­funda que permanece sempre idêntica, assim como tem uma lingua­gem específica que é a mesma desde Cicerone até Montaigne e Voltaire.
Muitos foram os que julgaram que essa escolha linguística tinha sido feita com propósitos de divulgação. Nada disso; foi feita porque constitui a única maneira de desenvolver uma ciência que seja também uma fenomenologia das emoções. Só se pode obter este resultado se combinarmos a estrutura teórica com a linguagem específica de uma determinada experiência.
No que diz respeito ao meu estudo do erotismo, o problema foi mais sério porque enquanto as linguagens do enamoramento e da amizade são unitárias, a do erotismo é estruturalmente dúplice e é construída com base numa polaridade que vai da linguagem obscena à amoro­sa e poética. Consegui sair disso evitando as referências explicitamente sexuais e utilizando sobretudo imagens e metáforas amorosas. Podia fazê-lo porque o objecto específico da obra era a diferença de sensibili­dade entre homem e mulher, e como a sensibilidade feminina conjuga mais profundamente sexo e amor, bastava eu apoiar-me mais no erotismo feminino do que no masculino. Neste livro, porém, já não posso evitar o problema. Tenho de o resolver com todo o arco da lingua­gem erótica, um continente imenso em que é necessário encontrar um princípio de ordenação.

domingo, novembro 19, 2006

2. Linguagem ordinária e científica

Nota prévia: Estimulado pelo forte interesse que o post anterior, verificável pela quantidade de comentários renovo que isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco, coloquem ou não, a camisinha, ou o diafragma, tá?

Murray Davis, no livro Smut5, evidenciou que, para nomear os ór­gãos e as actividades sexuais, existem duas linguagens completamen­te diferentes. Por um lado, a linguagem popular, ordinária, obscena; por outro lado, a linguagem oficial, culta, séria. Entre as duas, há um abismo. Ou falas uma ou falas outra, não podes misturá-las. De vez em quando, algumas palavras da linguagem ordinária penetram na lin­guagem séria e há palavras que cumprem o percurso inverso. Porém, uma vez realizada a passagem, pode usar-se só uma linguagem ou ou­tra, sem misturá-las. Com efeito, se ao usar o primeiro registo inserir­mos uma frase do segundo, ou vice-versa, obtemos um efeito grotes­co ou cómico.
Davis observa que, na Idade Média, a Igreja condenava de maneira extremamente forte o sexo, mas chamava os órgãos e os actos sexuais com o nome corrente. Só depois, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, as expressões populares são consideradas obscenas, tornam-se impro­nunciáveis, desaparecendo dos dicionários. Dois processos opostos produzem este resultado.
O primeiro é levado a cabo por aqueles que querem abrir um espa­ço ao erotismo, fazer literatura erótica, como os libertinos, que o con­seguem eliminando as palavras ordinárias para eludir a censura. Em seu lugar introduzem imagens, metáforas que evocam a experiência erótica de uma maneira nova. Mais tarde, na época vitoriana procura­-se eliminar qualquer possível referência ao sexo seja qual for a forma sob a qual este se apresente. Tudo o que diz respeito ao sexo é omiti­do ou substituído por alusões e metáforas cada vez mais afastadas do objecto. Até a gravidez se torna «estado interessante».
O segundo processo produz-se no século XIX com a medicalização do sexo. A anatomia dá um nome exacto aos órgãos sexuais e às suas partes, enquanto o nome ordinário os indica de maneira global. Dis­tingue-se o monte de Vénus, a vulva com os grandes e pequenos lá­bios, o clítoris, a secreção das glândulas de Bartolini, a vagina, o colo do útero, etc. Por outro lado, o escroto, as gónadas, a próstata, as vesí­culas seminais, o pénis, a glande, o prepúcio, o esperma. Surge, entre­tanto, a sexologia como disciplina científica separada e são descritas e omeadas com cuidado as várias actividades sexuais e as «perversões». Datam dessa época expressões como coito, cunilingua, felação, escop­tofilia, coprofilia, onanismo, sadismo, masoquismo, feticmsmo, urofi­lia, mpoxifilia, etc. Outros contributos são oferecidos pela antropolo­gia, que põe em evidência as diferenças entre costumes e a moralidade sexual nas populações a nível etnológico.
Surgiu assim uma linguagem científica internacional as séptica, que tem permitido nomear, descrever e analisar os comportamentos se­xuais sem estimular a emoção provocada pela linguagem ordinária, emoção esta que pode ser de excitação, desgosto ou recusa, mas que é sempre intensa.
Porque é que esta dicotomia radical existe? Porque será que a lin­guagem popular, ordinária, soa obscena, mas, ao mesmo tempo, pro­duz excitação sexual aproximando-se da pornografia, enquanto a lin­guagem médica é exacta, permite indicar qualquer coisa sem provocar nenhuma emoção erótica?
No seu conhecido livro Sex in Human Loving, Eric Berne explica a linguagem ordinária conforme o modelo psicanalítico clássico: esta de­riva da infância, das experiências desgostosas experimentadas pessoal­mente ou inculcadas pelos pais durante a infância. «Uma palavra torna­-se obscena quando a imagem que a acompanha é primária [da primeira infância] e repugnante.»6 Dado que cada geração vive na infância es­pecíficas experiências repugnantes, «mesmo se os adultos cancelassem toda a linguagem obscena do seu vocabulário, esta voltaria a aparecer com a geração seguinte».
Respondemos a esta observação psicanalítica de Berne lembran­do que as crianças aprendem a linguagem obscena graças aos miúdos mais velhos e aos próprios adultos. Aprendem-na porque designa as partes do corpo e os actos sexuais dos quais, porém, os adultos logo proíbem falar. Portanto eles percebem que se trata de palavras e coi­sas proibidas e é para violar o tabu dos adultos, para transgredirem a ordem deles, que utilizam essas palavras, primeiro às escondidas, de­pois de maneira manifesta. A revolução sexual dos anos 60-70 adop­tou explicitamente esta linguagem com o intuito de uma revolta ofen­siva. E utilizou da mesma forma e com a mesma função a blasfémia, a imprecação ou a obscenidade dirigida à divindade. Lembro-me de qué durante os dois anos em que fui reitor da Universidade de Trento, um centro do movimento estudantil italiano, muitos estudantes (não os li­deres, que usavam uma linguagem marxista) não conseguiam dizer três palavras sem interpor uma obscenidade ou uma blasfémia. Neste caso, a linguagem sexual obscena não tinha nenhuma função de evocação erótica, mas de mera transgressão, de ofensa à ordem constituída, à re­ligião, ao Estado.
Diversamente de Berne, Bataille afirma que a obscenidade é parte integrante do erotismo porque este é, na sua essência, transgressão, ex­cesso, fragmentação da ordem social e do trabalho. Despedaça o indiví­duo socializado, dissolvendo a sua consciência, e liberta a carne e a sua convulsão cega. Quem é tomado pelo frenesi erótico já não é humano, tornando-se, à maneira das bestas, desenfreadamente cego. Por isso, mesmo os amantes pudicos - observa - respeitosos dos tabus, para excitar-se, para viver até ao fundo uma experiência erótica desenfrea­da, utilizam palavras ordinárias, obscenas, violando o próprio moralis­mo. O erotismo é portanto sempre laceração, despedaçamento, profa­nação do tabu, dos costumes, da linguagem. A sua palavra, a palavra da excitação erótica, por consequência, é sempre obscena, ordinária.
Com base no relatório Kinsey7, ele observa que o mínimo da activi­dade sexual é levado a cabo por quem exerce uma profissão regular, en­quanto o máximo é atingido pelas pessoas do mundo do crime, que con­trolam os night clubs, os jogos de azar, a prostituição. Isto é, por quem estámais longe do trabalho quotidiano, monótono, disciplinado e mais perto da violência, do arbítrio. É do mundo do crime e da prostituição que pro­vém a linguagem obscena, porque é a linguagem do ódio e da profanação.

Não há a mínima dúvida de que a linguagem obscena possa incor­porar em si a violência da transgressão juvenil da ordem dos adultos, a do mundo do crime, a revolucionária dos movimentos e das revolu­ções. Após a batalha de Carberry Hill, Maria Stuart ficou prisioneira dos lordes escoceses e o povo que se levantou contra ela seguiu-a até Edimburgo com um coro de insultos obscenos, dos quais o mais leve foi «puta católica»8. Durante a Revolução Francesa, o processo, a con­denação e a viagem final para a guilhotina eram sempre acompanhados de coros terríveis de obscenidades. Porém, há também a violência do mndo do crime, o qual, além de rapinar, torturar, matar, ao mesmo tempo controla o sexo clandestino, a prostituição, a pornografia e por­tanto cria e dirige os espaços de desenfreamento sexual de que bene­ficiam os seus membros e que são vendidos às pessoas sérias que de­sejam «baldar-se ao trabalho e à família». E, ao fazê-lo, o mundo do crime tem uma relação mais violenta com a própria sexualidade, por exemplo, maltrata brutalmente as mulheres que usa como instrumen­tos e despreza o cliente de que se aproveita.

sábado, novembro 18, 2006

1. Sexualidade e amor

Nota prévia: Aconselha-se firmemente a quem tem certezas na utilização do genital ou a quem é estruturalmente seguro nos afectos a não prosseguir a leitura deste texto sacado directamente de Amor e Sexo, digo, "Sexo e Amor" de Francesco Alberoni.
Isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco. Coloquem a camisinha, ou o diafragma, tá?
CAPÍTULO 1

A COMPLEXIDADE DO EROTISMO

1. Sexualidade e amor

Na alma humana actuam impulsos contrastantes que criam dúvi­das, dilemas e levam a agir de maneira contraditória. Duas destas ten­dências, que podem entrar em conflito, reconciliar-se ou chocar-se de novo ao longo da nossa vida, são a sexualidade e o amor. Muitas ve­zes não nos apercebemos disso, porque sexualidade e amor nos pa­recem frequentemente fundidos, ou porque em muitos casos o amor nasce da sexualidade. Porém, a razão principal dessa confusão é outra: no último século tem prevalecido uma escola de pensamento, nomea­damente a psicanálise, que tende a associar o prazer, o amor e o sexo. É de natureza sexual, pertence à sexualidade oral, o prazer da criança que, pegada ao mamilo, suga o seio. É de natureza sexual, pertence à sexualidade anal, o prazer de relaxar os esfíncteres no acto da defeca­ção. Trata-se de formas de sexualidade pré-genital que continuam na vida adulta mesmo depois de se ter imposto o primado da sexualidade genital. Mas têm origem sexual não apenas os prazeres, como também os sentimentos da criança em relação à mãe. É de natureza sexual a ale­gria, a felicidade que a criança sente quando, depois de ter procurado a mãe, corre angustiada para os braços dela e adormece docemente so­bre o seu seio. É sexual o desejo que sinto ao observar uma bailarina, o que se faz com uma prostituta, a paixão que sinto pela minha namora­da, o desejo espasmódico de vê-la quando estou longe, a alegria de ou­vir a voz dela que me diz «amo-te». Enfim, tudo é sexual.

Demasiadas coisas juntas. Depois de um século de adesão quase unânime a esta tese, embora reconhecendo a Freud o imenso mérito de ter entendido a importância da sexualidade na vida humana, che­gou a hora de voltarmos a estabelecer algumas distinções elementares. Mesmo considerando apenas o adulto e aquilo que Freud designa de sexualidade genital, há sempre uma diferença entre a união pressurosa, a passagem por curiosidade de uma cama para outra, a paixão desespe­rada pelo nosso amado ou pela nossa amada e a ternura que sentimos pelo nosso filho ou pela nossa filha.
Existe uma sexualidade imbuída de amor e outra que não tem nada que ver com este, que, bem pelo contrário, é a antítese dele, como a violação, sobretudo aquela que ocorre em caso de guerra ou saque. Nas guerras antigas, a cidade conquistada era saqueada, os homens, in­clusive as crianças, eram mortos e as mulheres, violadas. Ainda no sé­culo passado, os soldados alemães das SS usaram como prostitutas as raparigas judias antes de as matarem, e os soldados russos que avan­çavam para Berlim violaram centenas de milhares de mulheres alemãs que fugiam perante eles.
Existem formas de sexualidade não violenta totalmente separadas do amor, como aquela impessoal da orgia, na qual se têm relações se­xuais indistintamente com um e com outro. Enfim, temos casos em que o desejo sexual não se harmoniza com quem amamos, mas põe­-nos em conflito com ele.
A sexualidade, como nos lembra Bataille1, é devassidão, transgres­são das regras, dos tabus, da ordem do dever quotidiano. Vive no pre­sente. É capricho, dissipação, esquecimento dos deveres, das preocu­pações. Para o adulto, é o máximo do jogo, também do ponto de vista do desencadeamento do corpo. O desporto requer disciplina, regra. Só a dança consegue ser espontânea, mas não chega aos excessos do ero­tismo. A sexualidade, por isso, parece mais adequada para romper as relações do que para as criar. Contudo, mesmo o grande amor, o amor apaixonado do enamoramento que estabelece laços emotivos fortís­simos e novas regras de vida, nasce frequentemente da sexualidade e constitui o seu triunfo.
N o livro Amo-te 2 distingui os laços emotivos em frágeis, médios e fortes. Laços frágeis são os que temos com conhecidos, vizinhos, colegas. Mas também. os que temos com uma prostituta ou que estabele­cemos com uma pessoa com a qual temos relações sexuais ocasionais. A mera relação sexual, sem mais nada, não estabelece laços fortes. En­tre os Laços médios lembramos os que temos com os amigos. Nós abri­mo-nos com eles, confiamos neles, recorremos à sua ajuda. Mas, di­versamente da mãe que continua a amar o filho mesmo quando ele se porta mal, quando o amigo nos mente ou nos atraiçoa, a relação rom­pe-se. São médios também os laços eróticos que duram enquanto nos dão prazer, e que se desvanecem perante a primeira dificuldade ou de­sacordo. São, pelo contrário, Laços fortes aqueles que se estabelecem en­tre filhos e pais e entre pais e filhos. Com efeito, resistem a desilusões, aflições e amarguras. São fortes também os laços criados pelo enamo­ramento, porque continuamos a amar mesmo quem nos faz sofrer. Enfim, é um laço forte o amor consolidado de uma vida vivida em co­mum, em que cada um se tornou indispensável para o outro, tanto que, quando um deles morre, o outro muitas vezes morre também.
Os antropólogos, após terem estudado os costumes sexuais e ma­trimoniais de centenas de sociedades e culturas, chegaram à conclu­são de que na nossa espécie há uma forte tendência para a monoga­mia, a exclusividade amorosa e sexual. Porém, ao mesmo tempo, em todas as sociedades, existe também um certo grau de infidelidade con­jugal, seja en..tre os homens, seja entre as mulheres. Existem portanto em nós duas tendências, dois desejos básicos simultâneos e em confli­to entre eles. O desejo que nos impele para uma pessoa especial, única, inconfundível, com a qual estabelecemos um laço amoroso duradou­ro e da qual temos ciúmes. O outro é um impulso de exploração que nos impele a todos, homens e mulheres, à procura de encontros eróti­cos e relações com novas e diferentes pessoas. Os dois impulsos coin­cidem apenas no enamoramento, porque este se dirige a uma pessoa nova, mas estabelece um laço de exclusividade. É por isso que o ana­lisei com tanta atençã03. Com efeito, depois de Stendhal\ tinha sido posto de lado. O enamoramento escapava a qualquer tentativa de ex­plicação por parte da psicanálise. Aliás, a tradição científica dominan­te, a anglo-saxónica, subestima-o, ignora-o, considera-o um fenómeno cultural temporário, ao ponto de não utilizar sequer um vocábulo para o designar, chamando-o ainda romantic love, como se tivesse nascido noséculo XIX, enquanto é suficiente ler a Bíblia para o encontrar em tem­pos mais remotos.
No domínio das relações entre sexo e amor, o enamoramento exalta e funde o máximo da sexualidade e o laço amoroso mais forte. A sexua­lidade preserva o seu carácter desregrado, explosivo. Porém, o enamo­ramento não se reduz a um enorme prazer sexual. É uma renascença, é juventude, excesso, êxtase. Rompe os laços anteriores, suspende a lei, instaurando o seu próprio direito soberano. Transfigura o mundo, põe­-nos em contacto com as fontes profundas do ser e cria um laço forte, duradouro, exigente. A mulher apaixonada antepõe o amado ao pai, à mãe, à celebridade preferida. O homem vê a sua namorada como a mais sedutora de todas as hierodulas, a mais erótica de todas as cortesãs.
Porém, ao insistir demais no enamoramento, acaba-se por pôr em segundo plano e subestimar a importância de outras experiências eró­ticas e da sexualidade em si mesma. Os dois impulsos de que falei, aquele que nos liga a uma pessoa e aquele que nos leva à procura do diferente, nunca desaparecem, e se num dado momento prevalece o primeiro, logo pode prevalecer o segundo, ou até podem manifestar-se ambos ao mesmo tempo.
Com base nestas considerações, julgo ter chegado o momento de estudar de maneira mais aprofundada e sistemática a grande variedade de relações entre sexualidade e amor.
Primeiro a sexualidade violenta, depois aquela em que o outro na sua integridade nem sequer existe, ou seja, a sexualidade impessoal. A seguir, a sexualidade em que o outro está presente como indivíduo, mas ainda não há amor. Depois, as relações sexuais mais ou menos duradouras, até ao caso do enamoramento e do amor que dura. Por último, o processo de «deserotização» da relação nascida do enamo­ramento. Isto porque, passado algum tempo, a fusão entre amor e se­xualidade enfraquece ou quebra-se. As duas tendências, que se tinham fundido, separam-se e podem entrar outra vez em conflito. O marido, embora continuando a gostar da sua mulher, deixa-se facilmente atrair sexualmente por outras mulheres. A mulher, mesmo continuando a gostar do marido, deixa-se tentar por uma aventura sexual.